Uma das coisas fascinantes sobre a Bíblia, em especial o AT, é a frequência com que se refere ou alude a si mesma; isto é, escritores posteriores do AT referem-se aos anteriores. Os que escrevem depois usam os escritos dos que escreveram antes para apresentar seu ponto de vista.
O Salmo 81, por exemplo, volta ao livro de Êxodo e quase cita literalmente a introdução aos Dez Mandamentos: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os tirei da terra do Egito” (Sl 81:10).
Em todo o AT, Gênesis é mencionado (especialmente o relato da criação), como no exemplo: “Olhei para a Terra, e eis que ela estava sem forma e vazia; olhei para os céus e eles não tinham luz” (Jr 4:23; veja também Gn 1:2).
Muitas vezes escritores posteriores do AT, como os profetas, se referiram ao livro de Deuteronômio, o qual desempenhou papel central na vivência da aliança no começo da história de Israel. Nesta semana, o foco do estudo será a maneira pela qual o livro foi usado por escritores posteriores. Que partes de Deuteronômio eles usaram e que pontos defendiam que são relevantes no presente?
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Josias, que tinha oito anos quando se tornou rei de Judá, reinou por 31 anos (640-609 a.C.) antes de morrer no campo de batalha. No décimo oitavo ano de seu reinado aconteceu algo que, pelo menos por um tempo, mudou a história do povo de Deus.
1. Leia 2 Reis 22. Que lições podemos aprender desse incidente?
Estudiosos concluíram há muito que o “Livro da Lei” (2Rs 22:8) era Deuteronômio, que aparentemente esteve perdido por muitos anos.
“Josias ficou profundamente impressionado ao ouvir pela primeira vez a leitura das exortações e advertências registradas nesse antigo manuscrito. Nunca antes ele compreendera tão profundamente a clareza com que Deus havia posto perante os israelitas ‘a vida e a morte, a bênção e a maldição’ (Dt 30:19). [...] O livro era abundante em declarações assegurando a disposição de Deus em salvar completamente os que pusessem Nele sua inteira confiança. Assim como Ele havia atuado para livrá-los do cativeiro egípcio, agiria poderosamente para estabelecê-los na terra da promessa e colocá-los como cabeça das nações da Terra” (Ellen G. White, Profetas e Reis, p. 393).
No capítulo seguinte de 2 Reis, podemos ver com que seriedade o rei Josias procurou “guardar os Seus mandamentos, os Seus testemunhos e os Seus estatutos, de todo o coração e de toda a alma” (2Rs 23:3; Dt 4:29; 6:5; 10:12; 11:13). E essa reforma incluiu uma purificação e limpeza de “todas as abominações que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da Lei, que estavam escritas no livro que o sacerdote Hilquias havia achado na casa do Senhor” (2Rs 23:24).
Deuteronômio apresenta advertências contra as práticas das nações vizinhas. As ações de Josias, incluindo a execução dos sacerdotes idólatras em Samaria (2Rs 23:20), revelaram o quanto os israelitas se afastaram da verdade que lhes foi confiada. Em vez de permanecerem um povo santo, condescenderam com o mundo, embora muitas vezes pensassem: estamos muito bem com o Senhor, obrigado. Que engano perigoso!
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Deuteronômio deixa bem claro que a lei e a aliança eram centrais, não apenas para o relacionamento de Israel com Deus, mas também para o propósito da nação como povo “escolhido” (Dt 7:6; 14:2; 18:5).
2. Leia Deuteronômio 10:12-15, onde são enfatizadas a lei e a posição de Israel. O que quer dizer a frase “céu dos céus”? Que conceito Moisés quis apresentar com essa expressão?
O que “céu dos céus” significa não está absolutamente claro, pelo menos nesse contexto imediato, mas Moisés aponta para a majestade, poder e grandeza de Deus. Ou seja, não apenas o próprio céu, mas “o céu dos céus” pertence a Ele, muito provavelmente uma expressão idiomática que aponta para a soberania de Deus sobre toda a criação. O Deus grandioso, que governa o céu dos céus, olhou com amor para Seu povo Israel e o chamou para uma aliança. Isso mostra o valor do povo de Deus.
3. Leia os seguintes versos, todos fundamentados na expressão que aparece primeiro em Deuteronômio. Em cada caso, que ponto está sendo defendido e como vemos a influência de Deuteronômio?
1Rs 8:27
Ne 9:6
Sl 148:4
Neemias 9 apresenta Deus como Criador e como o Único que deve ser adorado. Ele fez tudo, até mesmo “o céu dos céus e todo o seu exército” (Ne 9:6). Na verdade, Neemias 9:3 diz que “leram no Livro da Lei”, muito provavelmente, como no tempo de Josias, o livro de Deuteronômio, o que explica porque mais tarde os levitas, em meio a louvores e adoração a Deus, usaram a frase “céu dos céus”, que está em Deuteronômio.
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Tempos atrás, um jovem agnóstico buscava de modo apaixonado a verdade – qualquer que fosse essa verdade e aonde quer que ela o levasse. Por fim, ele creu em Deus Pai e em Jesus e aceitou a mensagem adventista do sétimo dia. Seu verso favorito da Bíblia era Jeremias 29:13: “Vocês Me buscarão e Me acharão quando Me buscarem de todo o coração”. Anos mais tarde, encontrou aquele verso novamente, mas em Deuteronômio. Ou seja, Jeremias citou Moisés.
4. Leia Deuteronômio 4:23-29. Qual é o contexto dessa promessa a Israel, e como essa promessa poderia se relacionar conosco hoje?
Como já vimos, o livro de Deuteronômio foi redescoberto durante o reinado do rei Josias, e foi sob seu governo que Jeremias começou seu ministério. Não é de admirar, então, que a influência de Deuteronômio seja vista nos escritos de Jeremias.
5. Leia Jeremias 7:1-7. O que Jeremias disse ao povo que fizesse e como isso se relaciona com o que está no livro de Deuteronômio?
Repetidamente em Deuteronômio, Moisés enfatizou como a existência na terra de Canaã era condicional e que, se desobedecessem, não permaneceriam nesse lugar. Observe o aviso específico em Jeremias 7:4, indicando que, sim, aquele era o templo de Deus e, sim, eles eram o povo escolhido, mas nada disso importava se não fossem obedientes.
Essa obediência incluía como tratavam estrangeiros, órfãos, viúvas – o que remonta diretamente a Deuteronômio e a algumas das estipulações da aliança que lhes cabiam seguir: “Não pervertam o direito do estrangeiro e do órfão; nem tomem em penhor a roupa da viúva” (Dt 24:17; veja também Dt 24:21; 10:18, 19; 27:19).
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Muitos dos escritos dos profetas consistiam em apelos à fidelidade, e em particular, fidelidade à aliança, reafirmada antes de entrarem na terra. O livro de Deuteronômio descreve a reafirmação da aliança de Deus com Israel. Após 40 anos, O Senhor estava prestes a cumprir (ou começar a cumprir) mais de Suas promessas de aliança, Sua parte do acordo. Moisés os advertiu que cumprissem sua parte também. Muitos dos escritos dos profetas são basicamente apelos para que o povo cumpra sua parte na aliança.
6. O que o Senhor disse ao povo, e como isso se relaciona com o livro de Deuteronômio? Mq 6:1-8; Am 5:24; Os 6:6
Estudiosos da Bíblia viram nesses versos de Miqueias o que é conhecido como “ação judicial da aliança”, em que o Senhor “processa” ou apresenta uma ação contra Seu povo por quebra do acordo. Nesse caso, Miqueias diz que o Senhor “tem uma controvérsia com o Seu povo” (Mq 6:2), em que a palavra “controvérsia” (rib) pode significar disputa judicial. O Senhor estava entrando com ação judicial contra eles, imagens que implicam o aspecto legal (além do relacional) da aliança. Isso não deveria surpreender, pois, afinal, o ponto central da aliança era a lei.
Observe, também, como Miqueias empresta a linguagem de Deuteronômio 10:12, 13. Porém, em vez de citá-lo diretamente, Miqueias o modifica trocando a “letra da lei” de Deuteronômio pelo “espírito da lei”, que é sobre ser justo e misericordioso.
Seja qual for a aparência externa de religião e piedade (sacrifícios de animais, “milhares de carneiros”), não é isso que constitui a relação de aliança de Israel com Deus. De que adianta a piedade exterior se, por exemplo, cobiçavam campos e se apossavam deles; cobiçavam casas e as tomavam; e assim, faziam “violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança” (Mq 2:2)? Israel deveria ser luz para o mundo; sobre eles as nações diriam, maravilhadas: “De fato, este grande povo é gente sábia e inteligente” (Dt 4:6). Portanto, deveriam agir com sabedoria e compreensão, o que incluía tratar as pessoas com justiça e misericórdia.
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Uma das orações mais famosas do AT está em Daniel 9. Ao observar pela leitura dos escritos do profeta Jeremias que o tempo da “desolação” de Israel (Dn 9:2), setenta anos, estava prestes a terminar, Daniel começou a orar.
E que oração! Uma súplica comovente na qual confessa seus pecados e os pecados de seu povo, enquanto ao mesmo tempo reconhece a justiça divina em meio à calamidade que se abateu sobre eles.
7. Leia Daniel 9:1-19. Que temas estão diretamente relacionados a Deuteronômio?
A oração de Daniel é um resumo sobre o que a nação havia sido advertida em Deuteronômio a respeito das consequências de não cumprir sua parte na aliança. Daniel se referiu duas vezes à “Lei de Moisés” (Dn 9:11, 13), que certamente incluía Deuteronômio e, nesse caso, poderia estar se referindo especificamente a ele.
Conforme Deuteronômio, eles foram expulsos da terra (Dt 4:27-31; 28) porque não obedeceram, exatamente o que Moisés havia dito que aconteceria (Dt 31:29).
É muito trágico que, em vez de as nações ao redor dizerem: “Certamente esta grande nação é um povo sábio e compreensivo” (Dt 4:6), Israel se tornou um “opróbrio” (Dn 9:16) para aquelas mesmas nações.
Nas lágrimas e súplicas de Daniel, ele jamais fez o que tantos fazem quando ocorre uma tragédia: “Por quê?” Ele nunca questionou o motivo. Graças ao livro de Deuteronômio, Daniel sabia a razão de tudo. O livro de Deuteronômio deu a Daniel (e a outros exilados) a compreensão de que o mal que veio sobre eles não era apenas o destino cego, o acaso, mas os frutos da desobediência, sobre os quais haviam sido avisados.
Contudo, a oração de Daniel indicava que, apesar desses eventos, havia esperança. Deus não os abandonaria, por mais que parecesse assim. O livro de Deuteronômio ofereceu não apenas o contexto para se compreender a situação, mas também apontou para a promessa de restauração.
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O texto de “[Miqueias 6:1-8] é uma das grandes passagens do AT. Como Amós 5:24 e Oseias 6:6, resume a mensagem dos profetas do 8o século. O texto começa com um exemplo de uma ação judicial de aliança em que o profeta convoca o povo a ouvir a acusação que Yahweh tem contra eles. As montanhas e colinas são o júri porque existem há muito tempo e testemunharam a maneira pela qual Deus trata Israel. Em vez de acusar diretamente Israel de quebrar a aliança, Deus pergunta se o povo tem alguma acusação contra Ele. ‘O que Eu fiz? Como Eu o cansei?’ Diante da injustiça, alguns podem ter ‘se cansado de fazer o bem’. Diante das oportunidades de enriquecimento rápido, alguns dos proprietários de terras podem ter se cansado de guardar as leis da aliança” (Ralph L. Smith, Word Biblical Commentary, Micah-Malachi [Word Books, 1984], v. 32, p. 50).
“Na reforma que se seguiu, o rei voltou sua atenção para a destruição de todo vestígio de idolatria que havia permanecido. Os habitantes da Terra tinham por tanto tempo seguido os costumes das nações que os rodeavam, de se ajoelhar diante de imagens de madeira e de pedra, que parecia estar quase além do poder humano conseguir remover cada traço desses males. Josias, porém, perseverou em seus esforços para purificar o território” (Ellen G. White, Profetas e Reis, p. 401).
Perguntas para consideração
1. Hoje estamos na posição de Israel: tendo verdades que o mundo precisava ouvir. Isso é um privilégio. Será que estamos cumprindo nossas responsabilidades?
2. O conhecimento do livro de Deuteronômio serviu de apoio à fé dos judeus na época de Daniel? De modo semelhante, o entendimento das Escrituras nos ajuda a lidar com dificuldades que, de outra forma, seriam desanimadoras?
3. Repasse a profecia das 70 semanas (Dn 9:24-27). Que papel a aliança tem nessa profecia? Por que a aliança é tão importante nesse contexto – e também para nós?
Respostas e atividades da semana: 1. O Livro da Lei foi achado e ajudou na reforma espiritual. 2. A grandeza de Deus não O impediu de valorizar Seu povo. 3. A) A grandiosidade de Deus. B) Deus é o Criador e Mantenedor de todas as coisas. C) Adoração a Deus. Todos se referem a Deuteronômio. 4. Em meio ao sofrimento, o povo buscaria a Deus e O acharia se O buscasse de todo o coração. 5. Que corrigissem suas ações. Assim, teriam bênçãos. 6. Que fossem obedientes, justos e humildes. Miqueias citou Deuteronômio. 7. Aliança, desobediência às leis e suas consequências.
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TEXTO-CHAVE: Dt 10:15
FOCO DO ESTUDO: 2Rs 22; Ne 9:6, 16, 21, 35-37; Jr 7:1-7; Sl 148:4; Jr 29:13; Mq 6:1-8; Dn 9:1-19
ESBOÇO
Como a Torá, ou seja, os cinco livros de Moisés (Pentateuco), é a primeira seção da revelação bíblica, espera-se que seja a parte da Bíblia mais citada nos escritos posteriores. O livro de Gênesis, com o relato dos eventos da criação dos céus e da Terra, a história da Torre de Babel e, especialmente, as histórias dos patriarcas e de José, permaneceu vívido na memória do povo de Israel, dos profetas e dos Salmos. Da mesma forma, os outros livros do Pentateuco – Êxodo, Levítico e Números – estavam presentes no culto de adoração e inspiraram a meditação dos sacerdotes, reis e profetas. No decorrer desta semana, vamos nos concentrar no uso que outros escritores bíblicos fizeram do livro de Deuteronômio, que mais do que qualquer outro teve um impacto no destino espiritual do povo de Israel. Visto que esse livro era o que lembrava Israel da lei, ele é a referência favorita para iniciar reformas ou repreender as pessoas que se desviavam das orientações da lei.
Em nossa pesquisa sobre a presença do livro de Deuteronômio nos escritos posteriores, redescobriremos temas familiares que serão atualizados e reorientados, de acordo com novos contextos históricos, para tornar as “veredas antigas” relevantes novamente.
Temas da lição
• A reforma de Josias: lições de um líder fiel.
• A oração de Neemias: verdades mais profundas baseadas no reavivamento e reforma.
• A oração de Daniel: luto pela perda.
• A religião de Miqueias: em que consiste de fato a verdadeira religião.
COMENTÁRIO
A reforma de Josias
O retorno radical à lei deve, antes de tudo, ser atribuído ao caráter de Josias e à sua profunda devoção. Nunca na história de Israel um rei esteve tão próximo do ideal da Torá. Os ídolos que haviam sido acumulados por seus predecessores foram “totalmente destruídos” por Josias, de acordo com o ideal de Deuteronômio (Dt 12:2, 3). Deus abençoou o reinado de Josias (639-608 a.C.), que durou mais de trinta anos e foi muito mais longo do que o reinado de seus predecessores. Josias tinha apenas oito anos quando se tornou rei. No décimo segundo ano de seu reinado, ele tomou sua primeira decisão formal, que tinha a ver com a restauração do templo em Jerusalém, uma preocupação que está claramente no cerne do livro de Deuteronômio (Dt 12:1-7). A primeira obra de restauração de Josias diz respeito, portanto, a toda a organização religiosa.
O templo em Jerusalém foi reparado e purificado. Todos os ídolos cananeus e assírios foram removidos; todo o país se envolveu nessa reconstrução por meio de ofertas. Mas foi no décimo oitavo ano que se iniciou o passo seguinte da reforma. Dessa vez, porém, a reforma não estava relacionada apenas aos rituais, mas tinha um caráter espiritual definido. Quando o rei pediu que o escrivão Safã fosse ao sumo sacerdote Hilquias para falar sobre a restauração do templo, Hilquias comunicou que havia descoberto “o Livro da Lei na Casa do Senhor” (2Rs 22:8). Esse manuscrito original, escrito por Moisés, foi entregue a Safã, o escriba real. Ele então foi ao rei para lê-lo diante dele. De acordo com o registro bíblico, quando o rei ouviu as palavras desse livro, ficou perturbado, pois entendeu que o livro falava sobre a ira de Deus e as Suas maldições. O rei rasgou suas roupas em sinal de arrependimento e ordenou aos sacerdotes e outros oficiais da corte real que consultassem a profetisa Hulda. Esse é um dos raros exemplos em que um rei busca, de um profeta, a solução para um problema. Uma série de pistas sugerem que esse “Livro da Lei” é o livro de Deuteronômio, no qual as mesmas palavras são usadas (compare com Dt 31:24-26). As passagens preocupantes que intrigaram e perturbaram o rei provavelmente tinham sido Deuteronômio 28 e 29, que declaram os dois caminhos – o da vida e o da morte, com suas respectivas bênçãos e maldições, que são as condições da aliança. Contido também nesses capítulos estão a referência à ira do Senhor (Dt 29:20) e a insistência de Moisés para que Israel tomasse o caminho certo (Dt 28:13).
O rei Josias ficou sensibilizado. Terminada a leitura, ele entendeu a gravidade da situação e imediatamente empreendeu uma reforma que foi além de meras medidas de culto e se tornou um profundo despertar espiritual em todo o país. Josias reafirmou a centralização do culto em Jerusalém, e a reforma se estendeu além das fronteiras de Judá para o país de Israel do Norte. Josias viajou para o norte, para Betel. Graças ao livro de Deuteronômio, o rei foi capaz de promover a unidade espiritual do povo, uma conquista que nenhum rei jamais havia conseguido.
Perguntas para discussão e reflexão: Que métodos Josias usou para lidar com o problema que dividia seu povo? Qual foi a atitude pessoal de Josias no chamado ao arrependimento?
A oração de Neemias
Como a reforma de Josias, a reforma de Neemias foi desencadeada pela leitura da Palavra de Deus. Nesse caso, o povo também leu o mesmo “Livro da Lei” (Ne 9:3), dentro do mesmo contexto espiritual de uma necessidade intensa de arrependimento (Ne 9:1, 2). O evento dessa reunião especial e jejum ocorreu “no dia vinte e quatro deste sétimo mês” (Ne 9:1; compare com Ne 8:14), durante o período solene do Dia da Expiação, seguido imediatamente do período festivo da Festa dos Tabernáculos, incluindo o “oitavo dia” da festa (vigésimo terceiro dia do mês), que era a assembleia que a encerrava (compare com Ne 8:18; Lv 23:39).
A oração de Neemias está imbuída de referências ao livro de Deuteronômio. Começa com uma bênção e uma invocação do Criador, “que ultrapassa todo bendizer e louvor” (Ne 9:5; compare com Dt 6:4), que criou “o céu dos céus” (Ne 9:6), a expressão superlativa que designa o lugar mais alto da morada divina, onde habitam os anjos de Deus, o exército do Céu, que O adoram (Dt 10:14; compare com 1Rs 8:27). A oração continua com um lembrete da aliança, o tema básico em torno do qual o livro de Deuteronômio está estruturado, e tudo o que Deus fez por Israel: como Ele cuidou deles durante os 40 anos no deserto (Ne 9:21; compare com Dt 2:7; 8:4; 29:5); e a resposta obstinada e rebelde de Israel, que endureceu a cerviz (Ne 9:16; compare com Dt 1:26-33; 31:27). Eles não se arrependeram de suas obras iníquas (Ne 9:35; compare com Dt 28:45-47). Neemias lamenta, então, que o povo de Deus estivesse colhendo o fruto de sua desobediência passada e estivesse sob a maldição da aliança (Ne 9:35-37; compare com Dt 28:47, 48).
Neemias concluiu sua oração com um último pensamento sobre o mistério da aliança. A frase hebraica ubekol zo’t, que inicia a conclusão de Neemias e que é traduzida como “por causa de tudo isso” (Ne 9:38), é uma expressão idiomática que significa “e, com tudo isso” (Ne 9:38, ARC). Neemias fica impressionado com o paradoxo dessa aliança, que é feita apesar da iniquidade dos reis, dos príncipes e dos sacerdotes (Ne 9:34, 37).
Perguntas para reflexão: Por que a morada de Deus é chamada de “céu dos céus”? Por que Neemias começa com a referência ao Deus da criação e à adoração a Ele pelas hostes dos Céus?
A oração de Daniel
À semelhança de Josias e Neemias, o profeta Daniel, que também orou e lamentou, leu “a Lei de Moisés” e falou dos desastres que sobrevieram ao povo de Deus como resultado de sua infidelidade (Dn 9:13; compare com Dt 28:15-68).
A religião de Miqueias
A exemplo de Moisés, Miqueias começou seu discurso com a mesma pergunta: “O que o Senhor pede de você [...]?” (Mq 6:8; compare com Dt 10:12). Essa indagação representa uma das preocupações mais cruciais sobre religião. Como os humanos podem se aproximar de Deus e atender às Suas expectativas? A resposta tradicional seria: sacrifícios, ofertas preciosas, boas obras para Deus. A solução de Miqueias, assim como a de Moisés, não está na oferta de presentes externos do adorador a Deus, mas em que ele “pratique a justiça” e “ame a misericórdia” (Mq 6:8). Miqueias ecoa Deuteronômio em suas palavras. As ideias de justiça e amor são comuns a ambos os textos. Miqueias não disse que sacrifícios e ofertas eram errados, mas que todos os atos religiosos, sem o relacionamento adequado com Deus e com o próximo, são inúteis.
Perguntas para discussão e reflexão: De acordo com os exemplos de Josias, Neemias, Daniel e Miqueias, qual é o primeiro requisito para iniciar o processo de arrependimento? Por que foi necessário consultar os profetas (Moisés, Hulda, Jeremias) para que o povo se arrependesse e as bênçãos divinas fossem derramadas?
APLICAÇÃO PARA A VIDA
Divisões
Você é um líder da igreja e sofre ao testemunhar divisões em sua comunidade. Escolha uma das seguintes opções:
• Você se posiciona ao lado de uma das facções contra o outro grupo e acusa o outro grupo de estar errado.
• Você ouve os dois grupos, reconhece em que cada um está certo e vai a ambos os grupos para ajudá-los a ver os valores um do outro.
• Você percebe que é parte dos problemas de sua comunidade e chama os dois grupos para orar com você e considerar seu erro na discórdia.
Igreja local
Como você deve reagir às áreas da igreja local que não estão vivendo de acordo com a luz que lhes foi dada? Quais são as melhores maneiras de buscar a reforma? Que princípios podemos tirar desses relatos bíblicos para aplicar à nossa própria igreja?
Vacina do amor
“Bip, bip.” Várias vezes por dia, alertas de texto de emergência tocavam em meu celular. As mensagens continham informações sobre o coronavírus e alertando a ficar em casa. A região da Coréia do Sul, onde trabalho, ganhou a distinção de ser uma zona livre de Covid-19 em meio à pandemia. Mas então, o paciente nº 31 trouxe o vírus para minha região ao participar de uma aglomeração em um evento evangélico. O evento se tornou um forte disseminador do vírus. Rapidamente, minha cidade se tornou o local mais infectado do país, com centenas de novos casos confirmados diariamente. Em menos de um mês, o número de casos confirmados chegou há seis mil, após o evento. Enquanto a mídia nacional divulgava relatórios diários sobre a região, os sul coreanos nos olhavam com desprezo, responsabilizando-nos pela disseminação do coronavírus por todo país.
Em um instante, tudo parou. As pessoas deixaram de ir aos supermercados, feirinhas ao ar livre e restaurantes. Ninguém comprava ou vendia. Poucos carros transitavam nas ruas. O vírus invisível transformou rapidamente o mundo real de cabeça para baixo. Minha igreja também foi afetada. Há décadas, eu compartilho o meu amor por Jesus livremente, mas os cultos e atividades missionárias precisavam fazer uma pausa. Questionei se a igreja de Deus deveria ser forçada a fechar as portas. Deveríamos desistir tranquilamente de nosso chamado de espalhar o evangelho e esperar a situação melhorar? Eu não conseguiria. Enquanto o mundo estava fechado, eu orava: “Pai celestial, sei que a crise global é Sua oportunidade. Qual a oportunidade que eu receberei?”
Uma luz brilhante acendeu em meio à completa escuridão. Lembrei-me de ter aprendido a fazer desinfetante para as mãos com o departamento do ministério de saúde da Associação local, e pensei: “Uma das coisas que as pessoas precisam nesses dias é um desinfetante para mãos.” Com a ajuda do departamento de saúde da igreja, os membros de minha igreja fizeram mil garrafas de desinfetantes para mãos e distribuíram nas feirinhas. Colocamos as máscaras e luvas para poder distribuir os produtos.
As pessoas responderam como se os desinfetantes fosse um dos mais valiosos presentes do mundo. Eles demonstraram um coração cheio de gratidão. Não revelamos nossa denominação, mas muitos perguntavam: “De onde vocês são?” ou “Qual organização que vocês representam?” Então respondemos que somos adventistas do sétimo dia. Uma crise se transformou em uma oportunidade. O amor de Deus foi revelado por meio da distribuição de nosso desinfetante de mãos, derretendo corações congelados pela Covid-19.
Então, Deus me deu outra ideia. A Coreia do Sul experimentou um pânico nacional quando todas as máscaras acabaram. Longas filas se formaram nas lojas, com pessoas esperando para comprar máscaras. “Como eu posso ajudar essas pessoas?”, eu me perguntava. Então, lembrei-me de ter aprendido a costurar na máquina, quando era jovem. Comecei a fazer máscaras de pano em casa. Outros membros da igreja ouviram sobre a iniciativa e se ofereceram para ajudar. O envolvimento deles me deu coragem e força. Acima de tudo, fiquei feliz em ver os irmãos que haviam se retirado do trabalho evangelístico por causa da Covid-19 recuperando sua vitalidade para Cristo.
Nosso Deus é um Deus das reviravoltas e transforma crises em oportunidades. Pessoas separadas pelo distanciamento social se aproximaram por meio de desinfetantes para as mãos e máscaras. Minha igreja se tornou um lugar para compartilhar a vacina do amor, a melhor vacina em uma crise. Distribuímos três mil frascos de desinfetante e centenas de máscaras. Através desse esforço de compartilhar, iniciado e alimentado por Deus, oro sinceramente para que a Terra seja preenchida, não com a Covid-19, mas “do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar” (Is 11:9).
Lembre-se: Parte da oferta trimestral ajudará na construção de um centro missionário na região da Coreia do Sul, onde a igreja de Jang Dong-woon está localizada.
Informações adicionais
• Peça que uma senhora apresente esta história na primeira pessoa.
• Jang Dong-woon trabalha como diaconisa e diretora do departamento missionário da Igreja Adventista Central de Gyeongsan, e também dirige o ministério da mulher na Associação Adventista do Sudeste Coreano.
• Faça o download das fotos no Facebook: bit.ly/fb-mq.
• Para outras notícias sobre o Informativo Mundial e informações sobre a Divisão do Pacífico Norte-Asiático, acesse: bit.ly/nsd-2021.
Esta história ilustra os seguintes componentes do plano estratégico da !greja Adventista, “I Will Go”: Objetivo de Crescimento Espiritual nº 1 – “reavivar o conceito de missão mundial e sacrifício pela missão como um estilo de vida que envolva não apenas os pastores, mas todos os membros da igreja, jovens e idosos, na alegria de testemunhar por Cristo e de fazer discípulos”; e Objetivo de Crescimento Espiritual nº 2 – “fortalecer e diversificar o alcance dos adventistas nas grandes cidades”. Conheça mais sobre o plano estratégico em IWillGo2020.org.
Comentário da Lição da Escola Sabatina – 4º Trimestre de 2021
Tema Geral: A verdade presente em Deuteronômio
Lição 11 – 4 a 10 de dezembro de 2021
Deuteronômio em escritos posteriores
Autor: Sérgio H. S. Monteiro
Editoração: André Oliveira Santos: andre.oliveira@cpb.com.br
Revisora: Josiéli Nóbrega
Uma das mais interessantes características das Escrituras é a inter-relação entre os seus textos. Essa característica é conhecida como intertextualidade e é o fenômeno no qual textos posteriores se utilizam de textos e temas anteriores que são, muitas vezes, citados literalmente, noutras são mencionados, e noutras são apenas aludidos.
A intertextualidade provê harmonia e unidade ao texto, permitindo que o leitor e o intérprete vislumbrem uma estrutura contínua de verdade que se repete e se complementa em cada livro, ampliando a compreensão da revelação divina em diferentes épocas e através dos olhos de diferentes pessoas. E com o livro de Deuteronômio isso não é menos visível. Ao contrário, é poderosamente clara a influência do texto de Deuteronômio no pensamento e na mensagem dos livros posteriores, além, é claro, do seu impacto na formação da própria identidade de Israel, como nação, e dos israelitas como indivíduos.
Uma das maneiras mais visíveis dessa influência do livro de Deuteronômio é a constante lembrança do seu eixo, que é a aliança. Como dissemos na introdução ao livro, Deuteronômio possui uma estrutura que coloca o código da aliança em seu centro e a aliança como tema central. Essa característica é importante quando buscamos reconhecer referências ao livro em outros autores posteriores.
E a literatura histórica é plena dessas referências, uma vez que a continuidade, ou descontinuidade do povo, a vitória ou a derrota, sua liberdade ou exílio, queda ou prosperidade é sempre apresentada em função de sua lealdade a Deus ou não, de sua obediência ou não à aliança. Embora nem sempre citado textualmente, o livro é visível nos tempos dos juízes, a ponto de autores que adotam a escola crítica enxergarem em Juízes a mão de um suposto autor deuteronomista, ou seja, pertencente à mesma escola que criou o livro de Deuteronômio nos tempos de Josias. Embora não concordemos com essa posição crítica, precisamos reconhecer a profunda influência de Deuteronômio sobre Juízes. A própria estrutura do livro é composta, ao que nos parece, com o Pentateuco diante dele e Deuteronômio em sua mente. Eles compartilham uma “filosofia da história” que enxerga Deus por trás de todos os eventos, sem ocultar as responsabilidades humanas nem deixar de apontar as suas falhas. O próprio vocabulário de Juízes se assemelha ao de Deuteronômio, além de outras evidências.
Mais adiante, no livro de 2 Reis, capítulo 22, é apresentada a reforma religiosa de Josias, após a descoberta do “livro da Lei”. A identificação desse livro da Lei com Deuteronômio é quase um consenso no mundo acadêmico, muito embora por razões críticas. Mesmo autores conservadores, entretanto, entendem que essa identificação seja no mínimo possível. Trabalhando sobre essa hipótese, não deixa de ser surpreendente que o texto aparentemente tenha ficado oculto por tanto tempo. Estaria perdido ou teria sido voluntariamente ocultado nos tempos de pior apostasia de Israel? Será que o texto havia sido posto de lado porque continha o testemunho escrito dos compromissos não cumpridos de Israel com Deus, durante o reinado de Manassés? Dada a impiedade do rei e sua reação ao ministério de Isaías, essa hipótese não deve ser de todo descartada (2Rs 21). Ademais, é possível que as mensagens de reprovação de Isaías, de alguma forma, tenham utilizado figuras retiradas de Deuteronômio, como nos mostra uma comparação entre Isaías 5:1 e Deuteronômio 32:32 e Isaías 5:26 com Deuteronômio 28:49. Além disso, a menção do profeta à idolatria e ao consumo de carne de porco (Is 66:17) e à profanação do Shabbat (Is 58:13, 14), nos lembram de maneira muito próxima Deuteronômio 5 e 14. Em resumo, parece claro que a mensagem de Deuteronômio fez parte da mensagem profética de Isaías, o que deve haver levantado profundas objeções e a perseguição que redundou em sua morte, sob Manassés. Não seria surpresa que esse rei buscasse silenciar a mensagem, matando os mensageiros e tirando da visão do povo a base legislativa da mensagem profética.
Já Jeremias, cujo ministério inicia após a descoberta desse livro, claramente inclui em sua mensagem referências ao conteúdo e ao texto do livro. É nele que encontraremos um uso profícuo da figura da aliança e da promessa da renovação dessa aliança. Toda a narrativa profética dos capítulos 29 a 33 está estruturada sobre o tema da fidelidade ou infidelidade à aliança, arrependimento e confissão, temas profundamente ligados à renovação da aliança nos capítulos finais de Deuteronômio Além disso, Jeremias faz uso frequente da palavra shemah, que é a declaração de fé de Israel, encontrada em Deuteronômio 6:4. Essa palavra aparece 92 vezes em Deuteronômio, 102 em Isaías e 189 vezes em Jeremias. Considerando o tempo do ministério profético de Jeremias e sua relação com a redescoberta da Lei de Deus, esse uso deve nos trazer à mente que a mensagem de Jeremias era um convite ao retorno do povo à aliança de Deuteronômio. Aliás, o termo berit, que significa aliança, aparece 9 vezes em cada um dos dois livros (Deuteronômio e Jeremias) e em contextos semelhantes. No capítulo 31 de Jeremias, o termo está em um contexto no qual Deus recontou a experiência do deserto e fez o povo lembrar-se de que Ele esteve com Israel ali e que estaria ainda com ele no futuro.
Outros textos proféticos, do período do Exílio, como Ezequiel 20:12, 20, e o capítulo 40 em diante, chamado Torah de Ezequiel, bem como Daniel 9, fazem uso da linguagem deuteronômica. Ou seja, evocam os princípios e preceitos da aliança para o tempo no qual profetizaram. Igualmente, em tempos anteriores, nos Salmos, encontramos profundas mensagens que nos recordam da aliança com Deus (Sl 1; 82; 119; etc.). Em resumo, os temas de Deuteronômio estão presentes nos cantos de Israel e nas mensagens proféticas que o alertavam do desvio do caminho da aliança e de Deus. E, de forma especial, mostravam o amor de Deus, que lhe havia proposto a aliança, buscando, convidando e instando com o povo para que ele permanecesse fiel a essa aliança, porque através disso, a nação teria vida.
Conheça o autor dos comentários para este trimestre: O pastor Sérgio Monteiro é casado com Olga Bouchard de Monteiro. É pai de Natassjia Bouchard Monteiro e Marcos Bouchard Monteiro. É bacharel em Teologia, mestre em Teologia Bíblica e cursa doutorado em Bíblia Hebraica. É pastor na Escola do Pensar e no Instituto de Estudos Judaicos Feodor Meyer. É membro da Adventist Theological Society, International Organization for the Study of the Old Testament, Society for Biblical Literature e Associação dos Biblistas Brasileiros.
Comentário da Lição da Escola Sabatina – 4º Trimestre de 2021
Tema Geral: Deuteronômio
Introdução a Deuteronômio
Autor: Sérgio H. S. Monteiro
Editoração: André Oliveira Santos: andre.oliveira@cpb.com.br
Revisora: Rosemara Santos
Nome do livro
O quinto livro das Escrituras, completando o chamado Pentateuco é “Deuteronômio”. O título do livro significa “Segunda Lei”, em português, e deriva do termo utilizado na Septuaginta (tradução grega da Bíblia hebraica, datada do 3º ou 4º século a.C.). O título original do livro, entretanto, como era comum nas Escrituras Hebraicas, deriva de suas primeiras palavras: “eleh hadevarim”, ou “estas são as palavras”. O título hebraico acentua a característica discursiva do texto, enfatizando o que é dito nele mesmo, segundo o qual, Deuteronômio se constitui em um discurso feito por Moisés, antes de sua morte (Dt 1:3). Já o título grego enfatiza o conteúdo legal do livro, com sua ampla repetição da Lei. Parece indicar, também, que os tradutores da Septuaginta viam o texto como sendo o texto encontrado pelos auxiliares do rei Josias, e que guiou suas reformas religiosas no 7º século a.C., como já sugerido pelos pais da igreja. Sendo isso um fato ou não, o título grego Deuteronômio se harmoniza de maneira perfeita com o conteúdo do livro, assim como o título hebraico se harmoniza com a forma dele (o que, diga-se de passagem, não aconteceu com outros livros cujo título grego causa apenas confusão, como “Números”, cujo título hebraico é Bamidbar: “no deserto”).
Essa dupla nomenclatura deverá ser mantida em nossa jornada nos próximos três meses, enquanto estudamos o guia da Lição da Escola Sabatina sobre Deuteronômio. Ele nos ajudará a compreender vários aspectos do livro, que podem ser perdidos de outra forma. Devemos, portanto, lembrar em cada leitura que estamos lidando com um discurso de Moisés, carregado do impacto de sua sabida despedida. Nesse discurso, ele relembra ao povo as experiências históricas que o levaram até aquele momento, dando-lhe, por seu turno, uma repetição da própria legislação que brotou de cada uma das experiências vividas.
Autoria e data
De longa data Deuteronômio foi reconhecido e recebido como um texto mosaico. Ele provinha da pena de Moisés e do período mosaico. Foi apenas com Baruch Spinoza, judeu espanhol do século 17, que dúvidas foram levantadas quanto à autoria mosaica do Pentateuco. Ele afirmou, por exemplo, que Moisés não poderia haver escrito sobre sua própria morte (Dt 34) e, portanto, o livro de Deuteronômio não era de sua autoria.
A principal teoria quanto à autoria do Pentateuco é que o texto é da época da reforma de Josias, por volta de 621 a.C., tendo sido produzido pelo palácio para dar validade a um projeto de poder que se centralizava em Jerusalém em torno do palácio, da figura real, do sacerdócio e do templo. Não obstante, evidências internas demonstram que o livro de Deuteronômio é anterior aos profetas literários, que são datados do 8º século a.C., é anterior ao período da monarquia dividida do 10º século a.C., e à conquista da terra por Josué, entre os séculos 15 e 14 a.C.
Quanto aos profetas, a expressão “O Eterno Deus dos seus pais”, que aparece em Deuteronômio, não é encontrada em nenhum dos profetas literários, mas está registrada três vezes em Êxodo (3:6; 15:12 e 18:4). Igualmente, a situação descrita em Deuteronômio 16 não condiz com o que conhecemos do tempo de Josias, no sétimo século a.C. A reforma de Josias tinha por objetivo especialmente três problemas: os Kemarim (sacerdotes idólatras), os bamot (lugares altos) e os cavalos de bronze para adoração ao deus sol. Nenhum desses itens é mencionado em Deuteronômio, criando uma tremenda dificuldade para os que enxergam uma data no 7º século a.C.
Evidência de que o texto tenha sido anterior à divisão do reino inclui a ausência de qualquer menção ou sugestão de que houvesse divisão entre Judá e Efraim e a frequência de expressões que entendem Israel como uma nação única (cf. Dt 1:13, 15, etc.). Igualmente, o relato demonstra que o livro foi ambientado em um período no qual Israel ainda não habitava em Canaã. Por exemplo, quando as fronteiras da terra são mencionadas, elas são descritas como “terra dos amorreus” e “Líbano” (1:7), e não como “de Dã até Berseba”, como em livros posteriores. A própria legislação de Deuteronômio pressupõe uma sociedade ainda em preparo para a entrada na terra, não uma que já estivesse ali estabelecida. Dos 346 versos dos capítulos 1–26, mais da metade é religioso e moral, enquanto 93 lidam com mandamentos sobre a iminente entrada na terra.
Em resumo, a melhor data para Deuteronômio é aquela apresentada no próprio texto: a iminente entrada na terra, quando Moisés ainda vivia, no fim dos 40 anos de peregrinação no deserto, por volta de 1405 a.C. No esteio da datação, faz todo sentido a autoria mosaica, estabelecida pelo texto de forma indireta e pelas referências posteriores a Deuteronômio como a Lei de Moisés.
Crítica textual
Como todos os livros da Bíblia, Deuteronômio possui também uma longa história textual. Os livros do Pentateuco, por sua vez, não têm uma história textual com variações muito importantes, uma vez que sempre foram considerados no pensamento judaico como ditados por Deus. Dessa forma, o processo de cópia respeitava – e respeita – estritas regras que visam impedir a corrupção do texto. Mas, com o decurso do tempo e principalmente com o surgimento de divisões internas no judaísmo, ainda que não tenha diminuído a importância e sacralidade da Torá/Pentateuco, surgiram tradições textuais diferentes, vistas no próprio texto, sendo as três principais o Pentateuco Samaritano, a Septuaginta e os Manuscritos do Mar Morto.
O texto padrão é conhecido como texto massorético por haver sido preservado por escribas especializados que preservaram a massorá, cujo significado é tradição, reconhecida como a que remontava até Moisés.
Os principais manuscritos massoréticos são o Códice de Alepo, datado de por volta de 920 a.C. e o Códice de Leningrado, datado em 1008 a.C. Esses dois manuscritos são a base do texto das Bíblias Hebraicas de hoje. Esses dois textos são comparados a outros manuscritos e, através de procedimentos próprios da crítica textual, o texto original é restaurado.
O Pentateuco Samaritano é o texto utilizado pelos samaritanos, escrito em alfabeto samaritano, que em poucas coisas se assemelha ao alfabeto hebraico que possuímos, mas que representa o alfabeto utilizado, provavelmente, por Israel antes do exílio da Babilônia. Ele possui não apenas uma língua diferente, mas também versos com versões alternativas, como a versão samaritana dos dez mandamentos, que conclama o povo a fazer um altar no monte Gerizim para adoração. No texto de Deuteronômio, encontramos duas interessantes mudanças também relacionadas com o lugar de adoração. No capítulo 27:2-8, o texto massorético emprega o futuro para indicar que Deus “escolherá” o lugar de adoração. Já no texto samaritano, o verbo utilizado está no passado, informando que ele já “escolheu” e essa escolha é o monte Gerizim, que, no Pentateuco Samaritano, toma o lugar do monte Ebal (v. 4).
A Septuaginta, ou a versão dos LXX, é a versão grega da Bíblia Hebraica, produzida por volta do 3º século a.C., com permissão do Sinédrio. De acordo com a tradição judaica, ela foi produzida por 72 sábios da Torá que, mesmo isolados, produziram um trabalho coerente. O que conhecemos como LXX, entretanto, tem em si mesmo uma história textual, que nos entregou versões, com a LXX propriamente dita e as versões de Teodócio, Símaco e Áquila. As alterações que a LXX preservou no texto de Deuteronômio são de tal importância que geraram toda uma disciplina de estudos. Os resultados desses estudos mostraram que, em algum momento, houve o surgimento de uma tradição textual que divergia do texto hebraico e tinha sido preservada pela LXX. O caminho dessa tradição textual foi no sentido de aproximar Deus do ser humano, focalizando mais em Sua imanência do que em Sua transcendência. Além disso, é clara a influência helenística na tradução da LXX.
A descoberta dos manuscritos do Mar Morto, em 1947, deu novo impulso à pesquisa do texto original dos livros bíblicos. Em relação a Deuteronômio, foram encontrados manuscritos em quase todas as cavernas, sendo a caverna quatro a principal, com 22 manuscritos encontrados. Alguns desses manuscritos concordam com o texto massorético do 9º século a.C., enquanto outros preservam uma leitura próxima da leitura da LXX.
Em suma, hoje possuímos como nunca, uma variedade de manuscritos de Deuteronômio que nos permite, por meio de análises textuais, nos aproximar muito, ou mesmo tocar, os textos como saíram das mãos de Moisés.
Estrutura
O livro de Deuteronômio consiste basicamente em discursos de despedida de Moisés. Reconhecem-se três discursos principais com apêndices curtos lidando com aspectos da aliança. A estrutura abaixo é um resumo da descrição apresentada por Gleason Archer em Merece Confiança o Antigo Testamento, p. 170, 171:
I. Primeiro Discurso: Revisão Histórica, cap. 11–4:43
II. Segundo Discurso: Leis Pelas Quais Israel Deve Viver, 4:44–26:19
III. Terceiro Discurso: Advertência e Predição, 27:1–30:20
IV. Lei Escrita Entregue aos Líderes, 31:1-30
V. O Cântico de Moisés: A Responsabilidade de Israel Diante da Aliança, 32:1-43
VI. Despedida e Recomendações Finais, 32:44–33:29
VII. A Morte de Moisés, 34:1-12
Tematicamente, é possível perceber uma estrutura circular, tendo o código da aliança, nos capítulos 12–26 como centro e duas molduras: uma interna (capítulos 4–11 e 27–30) e outra externa (capítulos 1–3 e 31–34). Essa estrutura demonstra o papel central da aliança no pensamento apresentado no livro.
Temas
São três os temas centrais do livro de Deuteronômio: Deus, Israel e Aliança.
Deus
Ele é o centro do livro, além de ser o centro das Escrituras. No Pentateuco, e em Deuteronômio em particular, Deus é apresentado por meio das lentes da revelação histórica, mais do que da natureza. Aliás, essa é uma das contribuições e polêmicas da Bíblia Hebraica: Deus é melhor conhecido por meio da Sua ação histórica. A história é o palco da revelação divina e a natureza apenas demonstra Seu poder criador, mas não Sua vontade redentora!
Israel
É o povo escolhido de Deus. Na Torá isso se torna explícito e claro. Em Deuteronômio, somos constantemente relembrados disso. Essa escolha, totalmente fundamentada em um ato livre da graça divina, não se baseia em nada que Israel houvesse apresentado para atrair a Divindade. Ao contrário, Israel havia sido infiel e desobediente e seguiria assim. Entretanto, por ser fiel à Sua aliança, o Eterno Se manteria ligado a esse povo.
Aliança
É o centro do relacionamento entre o Eterno e Israel. Embora nosso conceito de aliança precise ser revisto para perceber como a aliança é puramente divina, feita entre os membros da Divindade para benefício da ordem criada em geral e dos seres humanos em particular, não resta dúvida de que a aliança é o que liga o Céu à Terra, funcionando como um reino no qual os seres criados, perdidos e redimidos são convidados a entrar e viver. O coração de Deuteronômio pulsa com a aliança. No seu próprio centro, nos capítulos 12–26, encontramos o código de conduta dessa aliança, repetida por Moisés, que conclamou os israelitas a entrar nesse compromisso com o Senhor.
Lendo Deuteronômio
Moisés, em seus discursos carregados de emoção, inicia com a lembrança resumida de que eles ali chegaram porque, um dia, Deus prometeu aos seus pais a terra como herança, e isso não foi em decorrência de qualquer ação dos pais, mas pela livre graça amorosa de Deus. Essa é a lembrança fundamental que irá permear a caminhada de Israel, ou que deveria fazê-lo: o único antídoto para a apostasia e fundamento da esperança é a compreensão de que a origem de Israel é o chamado histórico de Deus. Embora Moisés não se preocupe em traçar as origens do povo até a criação, não resta dúvida de que na figura dos “pais” a história primordial está incluída, porque na visão bíblica, os patriarcas, como todos os seres humanos, são resultado dos primeiros 11 capítulos de Gênesis.
Por isso, um método sadio de interpretar e entender Deuteronômio deve levar em consideração alguns aspectos essenciais:
1. O texto é narrativo e apresenta um discurso de despedida de Moisés;
2. Grande parte do discurso apresenta palavras de Moisés e não de Deus.
3. O texto de Deuteronômio serve com um fechamento apropriado para a história iniciada em Gênesis, permitindo perceber várias nuances do amor de Deus individualizado.
O primeiro item deve nos levar a compreender o peso de cada palavra do texto. Os cinco discursos de Moisés que compõem o livro, mais a narrativa de sua morte, quando lidos a partir da perspectiva de um discurso de despedida, trazem uma visão diferente de cada tema apresentado. Não estão ali apenas palavras éticas de um grande professor, ou a narrativa histórica distante de um historiador, nem mesmo as palavras bem equilibradas de um poeta, mas a viva expressão da certeza de sua partida, temperada com a vívida fé histórica, moldada não pelas experiências de outrem, mas dele mesmo, como testemunho para aquela geração que descendia da geração que tinha morrido no deserto, mas também para futuras eras. A emoção é sensível nas palavras de repetição da legislação para aqueles jovens.
E por serem carregadas do tempo de vivência e da emoção do fim, as narrativas históricas de Deuteronômio são pintadas com a tinta da reflexão, e as pinceladas legislativas não são apenas repetidas menções de artigos do código levítico, mas vívidas interpretações daquele código. E aqui somos agraciados com uma oportunidade única: podemos ver Moisés, não como o mediador da entrega da Lei, mas como um intérprete. É possível, e isso é único, pensar nas palavras repetidas da Lei como a maneira pela qual o próprio Moisés entendeu a legislação dada a Ele por Deus e, por meio dele, ao povo! E precisamos permitir que essa realidade, a de que estamos escutando e lendo o que Moisés (certamente guiado pelo Espírito Santo) compreendeu da legislação que Deus lhe havia entregue, quando lermos os textos legais, apareça e faça parte do modelo de intepretação e restrinja nossa vontade de ser independentes em demasia.
Por fim, se mantivermos os dois primeiros artigos de nosso método em foco, aliados ao terceiro, quando estudarmos cada lição durante este trimestre, poderemos perceber que Deuteronômio trata precisamente da história como revelação, usando a expressão tão precisa de Wolfhart Pannemberg. Sim, a história sempre foi vista como um dos meios pelos quais Deus Se revela de forma geral, mas o fato, percebido por Pannemberg em Deuteronômio, é que a história é o palco por excelência da revelação especial, ou do plano da salvação. Por isso, podemos, e mais do que isso, devemos ler Deuteronômio como uma franca declaração histórica de um Deus que não legisla no vácuo, mas fundamenta Suas leis na Sua autorrevelação, contínua e constante, que se dá no palco da história. Ele quer ser não apenas o Autor distante da história, mas parte dela, interagindo com o ser humano e se relacionando com o mundo criado. Nessa verdade impressionante e transformadora apresentada na Torá (Pentateuco) e emocionalmente declarada e repetida nas palavras de Moisés, encontramos o foco do próprio Deuteronômio.
Conheça o autor dos comentários para este trimestre: O Pr. Sérgio Monteiro é casado com Olga Bouchard de Monteiro. É pai de Natassjia Bouchard Monteiro e Marcos Bouchard Monteiro. É Bacharel em Teologia, Mestre em Teologia Bíblica, cursa doutorado em Bíblia Hebraica. É Pastor na Escola do Pensar e no Instituto de Estudos Judaicos Feodor Meyer. É membro da Adventist Theological Society, International Organization for the Study of the Old Testament, Society for Biblical Literature e Associação dos Biblistas Brasileiros.